O que aprendi em Cuba

Não existe lugar no mundo que divida opiniões como Cuba. Essa pequena ilha na América Latina participou ativamente de alguns dos momentos mais cruciais da História recente — isso sem falar de todo o encanto cultural que circunda Cuba.

Politicamente falando, sempre estive mais à esquerda. Isso, no Brasil, quer dizer que ouço a frase “Vai pra Cuba!” desde, pelo menos, 2014. E minha resposta imediata — quando eu ainda me dava o trabalho de responder — sempre foi “Bora lá!”. Mas ir pra Cuba mesmo não parece a coisa mais palpável do mundo. Acho que nunca nem pensei em ir pra lá de fato.

A ideia foi da minha mãe — e eu topei no mesmo segundo. Vasculhamos a internet atrás de informações, preços, curiosidades, itinerários e roubadas. Montamos um roteiro simples que cabia mais ou menos no nosso orçamento e não nos colocava em muitas situações de risco: éramos duas mulheres “sozinhas” e, durante a maior parte da viagem, não teríamos acesso à internet.

No dia 1º de fevereiro de 2020, embarcamos rumo à Cuba. Na playlist, muito Buena Vista Social Club, Orishas e o Caetano Veloso cantando “Mamãe eu quero ir a Cuba, quero ver a vida lá, La sueño una perla encendida sobre la mar“. Expectativas? Todas. Nenhuma. Não sei dizer. Só sei que, no segundo em que pus os pés no aeroporto de José Martí, percebi que estava em outro planeta. Tudo é muito diferente e analógico — pra além de uma viagem convencional, Cuba é também uma viagem no tempo: me senti em 1950 & tantos em 2020.

Os carros são Chevrolet Bel Air e Lada Laika — heranças americanas e produções soviéticas — à moda antiga: em todos os meus dias nessa ilha do Caribe, nunca vi um cinto de segurança e, mesmo morando no Brasil em 2021, jamais vi um litro de gasolina custar tanto (porque, dentre as heranças americanas, tem também o famigerado embargo).

Voltando à viagem no tempo: nas ruas, os outdoors não têm promoções nem o produto do momento, mas propagandas socialistas estampadas com as caras de Guevara, Fidel e Camilo Cienfuegos. Tudo muito bem diagramado, com cores bonitas e frases impactantes — os heróis são os mesmos, os métodos nem tanto. Também não me lembro de ver nem um campinho de futebol, mas vi crianças jogando baseball com qualquer pedaço de pau.

Enfim, acho importante dizer que o que vou relatar aqui é baseado única e exclusivamente na minha experiência, não quero — nem tenho competência — pra resumir um país e uma cultura à minha vivência de apenas 15 dias, mas fiz questão de conhecer Cuba pra além do que é mostrado aos turistas.

Por isso, durante a maior parte da viagem, fiquei hospedada em lares cubanos. É uma modalidade muito comum chamada de “casa particular”, na qual os locais recebem turistas em suas residências em troca de dinheiro. Pra isso — e pra que o imposto sobre esse valor seja devidamente cobrado — eles precisam de uma licença do governo. Ainda assim, é a melhor forma de vivenciar a ilha e conhecer gente de verdade: das dicas do que fazer ao intercâmbio cultural, conhecer cubanos foi, definitivamente, a melhor parte da viagem.

Se minha estada na ilha tivesse durado menos dias — ou se eu tivesse ficado em resorts luxuosos de frente pro mar — teria ido embora achando, sim, que Cuba era o paraíso na Terra que já me prometeram, mas nem tudo é o que a gente gostaria que fosse — seja por crença em um mundo melhor ou para justificar toda uma ideologia.

Duas das grandes bandeiras cubanas hasteadas lá fora são a educação e a saúde. A primeira, percebi desde o primeiro segundo caminhando por Havana: todas as crianças estão sempre vestidas com uniformes vermelhos e os adolescentes, com uniformes marrons. As pessoas, no geral, são extremamente bem formadas e informadas. Sobre o tema, ainda na primeira semana, escrevi o seguinte:

Cuba tem quebrado as minhas expectativas em todos os âmbitos possíveis, tanto no bom quanto no mal sentido. Se existe um lugar que divide opiniões, é esse. Isso também com os próprios cubanos. Uma coisa, porém, segue incontestável dentre as muitas pessoas com as quais falei por aqui: a educação de qualidade. Esta é confirmada até por aqueles que detestam o sistema em que vivem: todo mundo vai à escola e — em geral — à universidade também.

Se você parar pra conversar com as pessoas em qualquer subúrbio de Havana, vai descobrir que são formadas em engenharia civil, agronomia e medicina. Que leem o jornal e estão antenados na política internacional. Há quem trabalhe muito e ainda assim seja apaixonado pelo estilo de vida, há quem sonhe em migrar pra Miami: ambos sempre informados e detentores de um conhecimento imaterial que sistema nenhum toma. O nome disso é educação.

Mas mesmo essa educação de qualidade vira contradição em Cuba: hoje conversei por horas com um taxista chamado Alejandro. Informadíssimo de tudo, me disse que não esperava que a Regina Duarte — tão popular no país por causa das novelas — fosse de direita o suficiente pra se juntar ao Bolsonaro. Papo vai, papo vem, Alejandro me disse que é formado em telecomunicações pela Universidade de Havana e que amava a profissão, mas que optou por ser taxista porque as gorjetas dali permitem uma condição de vida melhor do que o salário do Estado.

Entendo que nem todo conhecimento deva, necessariamente, ser capitalizado, mas deixar de exercer uma profissão de que se gosta — e que teve dinheiro do Estado investido — porque se vive melhor com as gorjetas além do taxímetro, é algo a se pensar.”

Quanto à saúde, minha percepção não poderia ser mais oposta ao que se diz por aí. Durante uma das milhares de andanças por Havana, minha mãe — que é farmacêutica bioquímica — decidiu que queria entrar em uma farmácia cubana pra saber como funcionavam as coisas por lá. É óbvio que não esperávamos uma Droga Raia da vida — até porque elas mais parecem shoppings que farmácias — mas, definitivamente, também não esperávamos as prateleiras COMPLETAMENTE VAZIAS que encontramos.

Na época da viagem, minha mãe já tinha quase 60 anos e duas hérnias de disco — por isso mesmo, embarcamos rumo à ilha completamente munidas com todo tipo de remédio: Nimesulida, Gelol, aspirina, anti-inflamatórios e antialérgicos. Melhor prevenir do que remediar. Por sorte, não precisamos usar nada.

No nosso último dia em Cuba, nos despedimos de Mariela — uma amiga que era vizinha de uma das casas particulares em que nos hospedamos. Ela me deu uma imagem de Iansã e eu dei presentinhos que tinha trazido do Brasil. Já estávamos quase saindo pela porta quando minha mãe lembrou dos remédios que tinha trazido. Aí, perguntou a Mariela se queria ficar com eles, explicando pra que servia cada um.

Nunca vou conseguir esquecer a cena que veio em seguida, porque Mariela encheu os olhos d’água e chorou. “Vocês não fazem ideia de como isso vale ouro aqui”. Lembro dela apertar a caixa de Nimesulida com força e contar que há anos tem dores nas costas. Pelo que nos disse, em Cuba as pessoas precisam de receitas médicas pra comprar QUALQUER medicamento e, a princípio, isso não seria um problema porque, de fato, existem muitos médicos disponíveis — mas remédios não.

Dia desses, li na Folha que Cuba pretende oficializar o “turismo de vacina”, no qual estrangeiros em férias na ilha poderiam receber a Soberana 2, imunizante que ainda está em fase de testes contra a Covid-19 por lá. Enquanto isso, Mariela ainda escreve pra minha mãe semanalmente pra saber se ela consegue mandar mais remédios por correio.

E é esse o paradoxo que estilhaçou a ideologia que a ilha sempre teve pra mim: existem duas Cubas, a dos turistas e a dos cubanos — e aqueles que, pela História, deveriam ser os protagonistas, vivem sempre à margem. Porra, esse é mesmo o regime que botou Fulgencio Batista pra correr?! Quanto tem que dar errado pra soberania virar subordinação?

O problema não é (só) viver do turismo. O problema é quase não ter a possibilidade de progredir — nem falo de acumular riquezas. Falo de uma vida digna e, ainda mais que isso, falo de esperança. Me deparei com uma juventude cabisbaixa que não vê possibilidade de mudar. Fidel esteve no poder por mais de 5 décadas. Ainda que seja incontestável sua importância histórica e conquistas, será mesmo que viver em um regime antidemocrático de 1959 é a solução pros problemas de agora?

Seja como for, sou estudante de jornalismo e uma das coisas que sempre me interessa é saber como funciona a imprensa nos locais. Antes de ir, tentei a todo custo agendar uma visita a um dos grandes jornais cubanos. Mas, mediante a dificuldade de contato e sabendo que os veículos eram todos estatais, desisti. Desisti porque sabia que não necessariamente me diriam a verdade e por entender que — até por conta da gerência — a pluralidade de pensamento muito provavelmente não estaria estampada na capa. Acho que é o que acontece quando só um partido é reconhecido.

Ainda assim, vasculhando a internet, conheci o trabalho de Maykel González Vivero, jornalista e ativista LGBTQ+ que, em 2019, ajudou a organizar em Havana uma passeata contra a homofobia — que terminou interrompida de forma violenta pela polícia cubana. Entrei em contato com ele e, desde antes de entrar no avião, conversamos sobre a situação do país e como vive a população LGBT na ilha.

Nos encontramos em Havana, perto do Barrio Chino, e Maykel me contou sobre a perseguição extrema que vinha sofrendo por parte do governo desde então. Falou, também, da situação do jornalismo independente e sobre a revista marginal que fundou com amigos, a Tremenda Nota, que visa contar histórias de pessoas LGBT e outros grupos marginalizados por lá.

Dentre as coisas que me disse, duas me marcaram demais. A primeira, foi como a esquerda internacional insiste em ignorar as denúncias dos cubanos a respeito da total falta de liberdade de expressão e preconceitos enfrentados no país. Isso, porque não querem desmistificar o status de paraíso anticapitalista que se criou ao redor de Cuba. A segunda, foi como, apesar de todas essas questões, Maykel não acredita em uma saída pela direita nem deseja intervenções estrangeiras: os problemas de Cuba tem que ser resolvidos pelos cubanos — mas não apenas os cubanos que estão no poder desde 1959.

Naquele dia, gravamos uma entrevista de quase uma hora na qual ele abordou cada um desses assuntos com muita profundidade e clareza. Por isso, não acho justo resumir toda a experiência do Maykel a alguns poucos parágrafos: logo faço um post com a entrevista legendada e na íntegra.

Estar na ilha foi uma das experiências mais transformadoras da minha vida. Lembro que antes de ir, assisti aos vídeos do Caio Braz por lá e o ouvi dizer “Cuba não tem stories!”. E é verdade: em Cuba se vive e se vê com os olhos. Bem vintage isso de existir sem ser por trás de uma tela.

Muito além do mar mais azul que já vi (de verdade, cresci indo pra Peruíbe, nem sabia que a água podia ser tão cristalina sem Photoshop) amei conhecer as pessoas. A simpatia e senso de humor mais autêntico, o ritmo quente, a conversa afiada — a criatividade exaltada em toda e qualquer situação. Rum, Mojito e Daiquiri: música alta, cantadas baratas, conhecimento de causa e salsa cubana — que não sei dançar, mas sou excelente em assistir. Toda a ilha funciona à sua própria maneira, e o que aprendi é que é preciso esperança até mesmo quando se perde a ternura. Não vejo a hora de voltar — obrigada por tudo, Cuba.

Jamile Diniz

Publicado por

Jornalista, geminiana, paulistana & esquisita. Gosto de geopolítica, arte, cultura pop e aleatoriedades em geral. Por aqui, acho importante trazer temas que abordem diversidade, ativismo e outras causas relevantes — além de entrevistas que mostrem lados que as redes sociais nem sempre exploram =) No Keeping, assino meus textos como Kyra, e você pode conhecer mais sobre meu trabalho aqui: https://www.linkedin.com/in/jamilediniz/

9 thoughts on “O que aprendi em Cuba

  1. Jamile, sou sua fã, você sabe disso, gostaria de ter desfrutado com você e sua mãe que amo muito, está viagem . Infelizmente nunca gostei de política mas sempre amei a liberdade. Acho que morreria se vivesse tolhida. Amo fazer o que quero. Gostaria de saber protestar. Adorei o seu texto e quero conhecer Cuba. Com suas contradições.

    Gostar

  2. Gostei do texto e narrar o que você viveu só reforça o que penso e acredito há anos, nenhum tipo de ditadura deve ser aceita, pois viver sob o julgo de outras pessoas. É inegável o avanço da educação e da medicina em Cuba, mas o ser humano necessita muito mais do que isso. Isso que escrevo não deve ser entendido como uma crítica ao sistema de Cuba pois não conheço nenhum sistema que respeita o indivíduo como um todo. Parabéns.

    Liked by 1 person

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s